Ulisses Zamboni
CEO e Sócio Fundador da Santa Clara
Com muito medo de parecer óbvio, escrevi meu artigo do mês passado a respeito da grande confusão de compreensão que existe entre o que é estratégia e o que é tática no mundo digital. Medo porque eu tinha apenas uma desconfiança de que os conceitos tinham entendimentos e apelos diferentes no universo marqueteiro, no entanto, a realidade se provou idêntica à desconfiança. Recebi muitas mensagens elogiosas por ter escrito sobre o assunto, que, apesar de básico, tem o poder de expor profissionais de marketing e de agências a erros crassos.
E lá estou eu de novo levantando mais um tema controverso do universo conceitual do marketing ao qual eu, particularmente, duvido, ponho a mão no fogo e arrisco dinheiro (opa, não permitido!) em dizer que também está muito desalinhado entre os profissionais da área.
Diferentemente da engenharia e da medicina, ou se formos mais longe, das cadeiras de exatas e das ciências biológicas, o gerenciamento do marketing moderno permite uma certa elasticidade na aplicação de seus conceitos que na prática de gestão leva os profissionais dessas áreas a interpretações equivocadas e geram trabalhos em vão.
De forma ainda mais aguda, ao longo dos meus 39 anos de atividade profissional, não lembro de ter presenciado tantas e infinitas discussões sobre os mesmos temas conceituais, especialmente nesta época onde o marketing, de acordo com a MIT Sloan Business School, é uma alavanca de captura de valor transversal nas empresas, ou seja, perpassa praticamente todas as áreas do negócio: da área de logística ao mercado propriamente dito.
Necessidade de Mudanças
As escolas de negócios mais modernas do mundo são muito claras em reconhecer que a jornada de decisão de compra desta década está submersa na subjetividade do consumidor. Os aspectos emocionais e especialmente os atributos filosóficos intangíveis de marca estão “jogando um bolão” na hora da escolha de marcas.
Explico melhor. A afirmação: “Não vou comprar esta marca porque ela não ‘está nem aí’ para o meio ambiente” acabou se normalizando no tecido social e tomando corpo no atual padrão de resposta do consumidor brasileiro na hora da decisão de compra. Mas, é claro que dá para relativizar bastante as declarações dos usuários sobre uma marca, porque nem sempre elas estão alinhadas com suas atitudes.
O que é certo? O atributo filosófico de marca tem entrado na jornada do processo de compra com uma rapidez exponencial.
De David Aaker (formado pela MIT Sloan School of Business, com PhD em estatística pela Stanford University), que trouxe conceitos sólidos sobre posicionamento e equity de marca no século 20 até o mais famoso teórico da administração Philip Kotler, que dispensa apresentações, praticamente nada havia mudado até o final do século 20.
No entanto, vendo o mundo mudar tão rapidamente e “subjetivar” ao seu redor (vale uma lida no meu artigo sobre o mundo VUCA e BANI), os CEOs e os gestores seniores das empresas começaram a se preocupar com o gap entre o mundo moderno e os atributos de suas marcas. E iniciaram um processo de revisão de branding, solicitando aos seus departamentos de marketing e às suas agências, trabalhos de reconstrução de imagem de marca.
E é aí que começa a grande confusão.
A definição de marca neste século mudou?
Com o avanço das mídias sociais e a diminuição da assimetria de poder entre empresas e usuários – o chamado marketing do empoderamento das pessoas ou people driven marketing – tem literalmente metamorfoseado as técnicas de estruturação das marcas no marketing moderno.
A minha marca precisa de um “reposicionamento”? E de um Propósito? Qual a Proposta de Valor que se alinha aos novos tempos? Essas são preocupações cotidianas dos gestores sobre suas marcas que têm se somado a outras dezenas de questões sobre os negócios nos tempos atuais.
Mais do que nunca, as marcas hoje representam não somente a característica distinta e diferenciadora de um produto ou serviço no mercado como também e principalmente, se define como uma espécie representante diplomática do negócio, capaz de construir pontes e diálogos, além de estruturar o engajamento com a sociedade. E, por isso, falar de marca neste século é também falar da companhia que a produz.
Dessa forma, as perguntinhas de praxe que ouço todos os dias na minha consultoria de branding e comunicação mencionadas acima, trazem ao mesmo tempo receio e uma certa ansiedade dos gestores, uma vez que os conceitos de marca atuais adicionam uma camada de complexidade na já competitiva equação do marketing e comunicação.
A culpa toda é do Brand Purpose ou do Propósito de Marca
Com a escalada de importância dos atributos mais intangíveis de marca e com o papel de representar a voz das empresas perante a sociedade, as marcas se vêem obrigadas a repensar (ou a começar a pensar) em seu papel ético na Terra. A sustentabilidade, a ética empresarial, a transparência e mais um punhado de valores humanos estão agora sob a responsabilidade da iniciativa privada por meio de suas marcas.
Aqui eu poderia falar extensamente sobre o Capitalismo Consciente ou Capitalismo da Verdade, ao qual faço parte, mas prometo a vocês que escreverei sobre o assunto num artigo separado, mais para frente, dada a importância que o assunto merece.
Depois da Igreja e do Estado, finalmente chegou a vez de responsabilizar a iniciativa privada pela evolução da sociedade – até porque, vamos lembrar, não é nem o Estado, nem Igreja que geram riqueza, progresso e que dão emprego ao cidadão. O inegável papel do capitalismo como ordem econômica mundial hoje coloca seus players em posição de líderes nas questões de sobrevivência da humanidade. E, por isso, as companhias têm se desdobrado para encontrar um território de luta, de defesa da sociedade ou da natureza. É a esse esforço que chamamos de Propósito de Marca ou Razão de Existir.
Diante disso, você deve estar se perguntando se o Propósito de Marca é um elemento de imposição do mercado ou um caminho natural e espontâneo das empresas, certo? O Propósito de Marca ou Corporativo passa a ser mais um vetor obrigatório no elenco de características de uma marca. Queiram ou não, os gestores e CEOs precisam olhar para o assunto, seja de forma compulsória, seja por pura consciência para sustentabilidade do negócio nos próximos anos. Daí a grande correria das marcas em revisitar seus comportamentos.
Não bastasse, e como diz Philip Kotler em seu livro Marketing 4.0, quem é que hoje, em sã consciência, num mundo tão competitivo e cheio de commodities, compra um produto ou serviço porque não existe outro similar? A resposta é simples: ninguém. Produto por produto, serviço por serviço, vivemos num mar de similaridades. E a última camada de diferenciação que resta para uma marca ser escolhida reside em seu lado ético. Compulsório ou não, o assunto precisa ser endereçado.
O Propósito e as consequências nos conceitos de Marketing
Sabe quando a gente pega um nó de uma rede de pesca, levanta e junto com ela vem os outros nós que estão ao lado? Pois bem, levantar o assunto Propósito de Marca ou Propósito Empresarial é como pegar um nó numa rede. É mexer com toda a cadeia de valores e conceitos que permeiam o marketing. É também falar de posicionamento de marca, de tom de comunicação, da proposta de valor nos negócios, de posicionamento de comunicação, de suas narrativas, e por aí vai.
Não devo entrar aqui numa questão mais desconfortável que é apontar para negócios que, pela obrigação de se ter um Propósito, executam o Purpose Washing, assim como foram algumas iniciativas de Green Washing no início dos projetos de sustentabilidade ambiental, mas vale a menção.
O que quero destacar de fato é a Babel que se tornou a compreensão dos conceitos de marketing a partir do Brand Purpose. O Propósito é um Reposicionamento (de marca ou empresarial)? Qual a diferença entre Propósito e Proposta de Valor (ou Oferta de Valor Agregado)? Crença de Marca é a mesma coisa que Posicionamento de Marca?
Desafio você a responder de uma só vez, os conceitos acima. Eu mesmo, que lido diariamente com o assunto, tenho que parar um pouco e pensar se estou no território correto de definição…por isso, não se envergonhe. A confusão está formada. E é por isso que queria finalizar esse artigo com uma pitadas conceituais sobre os termos marqueteiros tão falados nestes tempos atuais.
Os conceitos que nos interessam.
Propósito de Marca – A bem da verdade, e após a leitura do artigo, praticamente já temos definido o território do Propósito, mas vale um “recap“.
Propósito é a legítima vocação filosófica da empresa em advogar & adotar por uma prática social ou ambiental que vise melhorar o “status quo” da comunidade, da sociedade e/ou do mundo em geral. E que tenha, obrigatoriamente, alinhamento com seus valores corporativos e da sua cultura empresarial.
São atitudes empresariais que podem ou não estar ligadas ao próprio negócio, mas que gerem acima de um diferencial competitivo, algo mais nobre do que esperamos de uma empresa.
Natura por exemplo, é um exemplo óbvio e conhecido de Propósito empresarial. Comunicação, produtos, serviços e processos, todos se direcionam para o mesmo ponto de propósito: o bem estar da humanidade por meio da sustentabilidade do planeta. No entanto, num outro exemplo, Spotfy tem como Propósito “desbloquear o potencial da criatividade humana dando a oportunidade de milhões de músicos viverem de sua arte independentemente do monopólio das gravadoras e, ao mesmo tempo, dar aos fãs a oportunidade de desfrutar de seus ídolos”. Um propósito nobre, mas quase funcional, alinhado com seus objetivos de negócios.
É claro que o Propósito interfere diretamente no comportamento (comunicação) e no posicionamento das marcas de produtos e serviços que fazem parte do portfólio da companhia, no entanto, as marcas e seus posicionamentos são entidades separadas do Propósito porque visam competir ou ganhar espaço no mercado em que atuam (diferentemente de um Propósito Empresarial que gera uma resposta mais inspiradora).
Se a marca empresarial for a mesma da do produto ou do serviço, via de regra, a dimensão humana e filosófica terá correlação com os valores corporativos. E a dimensão relacional e funcional com os valores competitivos de produto. O que não quer dizer que, dependendo do tamanho da marca, ela não possa representar também os atributos filosóficos empresariais e ter também um perfil mais humano.
Se formos definir Propósito para além dos parágrafos acima, arrisco dizer que devemos analisar caso a caso.
Princípio (Filosófico) Norteador – Para as médias e pequenas empresas que têm uma certa dificuldade em alçar voos tão nobres e globais (como os de salvar o mundo), elas apelam para uma espécie de Propósito com dimensões mais modestas, porém não menos nobres que chamamos por Princípio Norteador.
Imaginem uma rede de borracharias. Você consegue enxergar esse negócio “salvando o mundo”? Mesmo que seja um varejo poderoso, com lojas espalhadas por todo Brasil e com parcerias robustas com a indústria de pneus, seu negócio pode lançar mão de um recurso mais filosófico e colaborar para uma comunidade melhor.
No caso dessa Rede, adotar um território hipotético que beneficie a sociedade pode servir como um bom GPS. E se por exemplo, nesse caso, a rede adotar o território da Segurança para enveredar todo e qualquer esforço para garantir esse bem?
Na pandemia, por exemplo, pensem quantas ações poderiam ser criadas para garantia de segurança como um “asset” social?
Posicionamento de Marca – é o território (uma espécie de filtro) por onde a marca vê o mundo. Por exemplo, na categoria automotiva, as marcas podem construir suas posições (e narrativas) “a partir” de lentes diferentes. Volvo vê o prazer de dirigir e o design sempre pelas lentes da segurança. Ferrari, pela esportividade radical. Lexus, pela via do luxo etc. Outro exemplo ilustrativo, o posicionamento dos cremes NIVEA, por exemplo, é ver a hidratação como “care” enquanto que AVON se posiciona a partir do filtro do empoderamento feminino. A de O Boticário é transformar a vida das pessoas através do Amor (que gera – e é – a Beleza).
Notem que Posicionamento é o conceito que alicerça as marcas num grande território. Os exemplos acima são “percebidos” e não “narrados ou ditos” pelas marcas.
Crença de Marca – é a narrativa que embala o posicionamento das marcas. Com a Nike, por exemplo, a narrativa que embala seu posicionamento de Performance é “Existe um atleta dentro de cada um de nós”. Em Ikea, famosa loja de decoração Europeia, que tem como posicionamento “Design”, sua crença é “Design is a right, not a previledge”. Note que dentro de cada uma dessas narrativas que embalam essas marcas, existem mensagens que carregam outros valores para construção do Equity da marca.
Posicionamento de Comunicação – Enquanto a Crença da marca é a embalagem ou a narrativa do Posicionamento, o posicionamento de comunicação é a narrativa da Crença. A planilha 5W2H – What, Why, Where, When, Who, How, How Much – é uma espécie de gabarito que pode ajudar as agências de publicidade a construírem histórias para as marcas.
As “histórias” publicitárias que traduzem a crença constróem uma linha de campanha. E dela, também saem o tom de diálogo que essa marca tem com seu público de interesse, suas atitudes, seus comportamentos etc. Com as mídias sociais, o Tom da Comunicação é “chave” para construção de uma identidade de marca clara na construção dos diálogos com os públicos.
O caso mais emblemático de narrativa da crença no Brasil é o da marca BomBril, com o personagem do Carlos Moreno, o Garoto Bombril, que por quase três décadas contou a história da marca, sempre embalada com bom humor, delicadeza e uma pitada de sarcasmo.
Texto publicado originalmente por MIT Sloan Management Review Brasil:
https://mitsloanreview.com.br/post/o-tabuleiro-de-xadrez-do-marketing-foi-chacoalhado