Que diversos segmentos do marketing passaram por grandes transformações em seus modelos de negócio, impulsionados pela ampla acessibilidade e leitura massiva de dados em tempo real e a ascensão da inteligência artificial (IA), não é novidade para ninguém. O que poucos comentam é que nenhum foi tão profundamente abalado quanto o das empresas de pesquisas de mercado, especialmente as de comunicação dedicadas ao estudo da reputação e da saúde das marcas.
Estou falando de um segmento global e multi bilionário, que movimenta US$ 54 bilhões ao ano — cerca de 38% do total da indústria de insights —, segundo dados do relatório “Esomar’s Global Market Research 2024”, da European Society for Opinion and Market Research.
Durante décadas, gigantes como Kantar, Ipsos, GfK e Nielsen reinaram absolutas no mercado de pesquisa de comunicação. Seus portfólios incluíam vastos painéis estatísticos, estudos de tracking, métricas de saúde de marca e avaliações de reputação — tudo baseado em dados coletados por pesquisas telefônicas ou entrevistas presenciais, diretamente com os públicos de interesse. Essas medições, transformadas em relatórios estratégicos, eram vendidas em contratos milionários (locais ou globais), que lhes garantiam um negócio sólido, rentável e praticamente incontestável.
Raramente havia reclamações ou ponderações sobre a acuidade dos dados, desvio nas respostas declaradas ou viés cognitivo dos analistas. Mesmo porque todo o segmento de marketing no mundo era refém contumaz do modelo de pesquisa analógico.
A única reclamação das altas lideranças de marketing (CMOs) e dos estrategistas das organizações recaía sobre o delay na chegada das análises dos dados, geralmente entregues três ou seis meses depois de colhidos — o que já virou passado.
Quando a IA derruba décadas de poder no mercado de pesquisa
Desde suas origens, as grandes empresas de pesquisa operaram em um verdadeiro setor oligopolista. Seu modelo de atuação se apoiava na escassez de oferta: poucas companhias detinham o domínio técnico da coleta estruturada de dados e o know-how estatístico e de campo, garantindo-lhes uma confortável assimetria de poder frente aos clientes. Reinavam soberanas nos orçamentos anuais de marketing, até porque eram praticamente a única fonte de dados confiáveis disponíveis para nortear decisões estratégicas das marcas.
Nos últimos anos, porém, a chegada da nova era dos dashboards e da IA pressionou os institutos de pesquisa a repensarem completamente seus tradicionais modelos de negócio e a revisarem profundamente suas bases metodológicas e modos de operação.
E quero deixar bem claro aqui que eu não olho para essa situação com pena desses fornecedores de serviço.
No novo cenário, dominado por dados vivos e análise automatizada, atualizar metodologias já não era suficiente. Era preciso reconstruir, desde a base, o pensamento de seus negócios e das suas técnicas analíticas de pesquisa.
Hoje é inegável que a instantaneidade dos dados e sua análise preditiva, assim como a observação comportamental, tornaram obsoletos os antigos métodos de coleta de pesquisa e os diagnósticos retirados de respostas “declaradas” dos usuários sobre as marcas.
Reputação de marca: do monitoramento ao entendimento contextual
A reputação não se mede mais pelo que é dito sobre uma marca nas pesquisas, mas pelo que é dito sobre ela, sem filtro algum, no diálogo vivo entre stakeholders nas mídias sociais, onde a verdade, positiva ou negativa, se manifesta. Ou seja, não é mais o que o consumidor declara para você, gestor da marca, mas o que ele “faz com” e “fala sobre” sua marca quando você não está na conversa.
Historicamente, o índice de reputação sempre foi tratado como uma construção estatística (uma espécie de “ciência das aparências”) que se encarregava de transformar declarações de imagem trazidas por usuários em métricas confiáveis e comparáveis.
Os modelos tradicionais de medição de reputação eram construídos por uma métrica composta. Ou mais tecnicamente, por um índice multidimensional baseado na soma ponderada de atributos e valores percebidos de marca, que podem incluir admiração e respeito, confiança, responsabilidade social, inovação, entre outros.
Ainda que metodologicamente rigorosa, essa abordagem se baseava em percepções declaradas, muitas vezes advindas de respostas moldadas por convenções sociais, vieses ou apenas pelo desejo de agradar o entrevistador, o que tornava a reputação algo mensurável, sim, mas nem sempre verdadeiro.
A diferença hoje é que o comportamento digital passou a falar mais alto que qualquer resultado estatístico coletado por declaração de usuário em pesquisa. Comentários espontâneos, memes, fóruns, curtidas, críticas e silêncios, tudo isso compõe o novo retrato dinâmico da imagem pública de uma marca.
A atual tecnologia permite não só quantificar menções e identificar sentimentos (positivos, neutros ou negativos) e mapear tópicos populares correlacionados à sua marca, mas também, com a evolução de modelos de linguagem natural (NLP), entender intenção e ironia nas falas das redes, detectar emoções complexas, como frustrações, ansiedades ou entusiasmo, e até interpretar sentidos implícitos, como críticas veladas, sarcasmo e duplos sentidos.
Novos modelos que transformaram o mercado
Atualmente, há uma verdadeira corrida por reinvenção nesse campo, e as empresas de pesquisa vêm reagindo de, pelo menos, três maneiras distintas.
A primeira e mais óbvia é integrar dados declarados aos dados observados. Na prática, é dar sentido e confronto estatístico entre dados declarados (pesquisas/entrevistas/tracking) e dados observados (mídias sociais/Google Trends/fóruns/comportamento digital). É mais ou menos o resultado entre o que o público diz e o que o público faz.
A Ipsos, por exemplo, desenvolveu produtos que cruzam métricas reputacionais de stakeholders com análise de mídia e rede social, incluindo análise semântica e modelagem estatística preditiva. Já a Kantar passou a oferecer dashboards integrados com dados de social listening, campanhas, brand lift (avalia o quanto uma campanha impacta a percepção da marca) e sales uplift (avalia o quanto uma campanha impacta diretamente nas vendas), medindo o que a marca promete, o que ela entrega e como é percebida.
A segunda abordagem, de caráter híbrido, abandona as pesquisas episódicas (anuais ou semestrais) e migra para formatos contínuos — como pulse surveys (pesquisas rápidas e contínuas, também chamadas de pesquisas pulse), dashboards, análises de sentimento e alertas de crise automatizados. Isso nada mais é que um social listening bem feito.
O interessante desse modelo é que ele permite cruzar métricas de awareness, favorabilidade, engajamento e social share of voice (proporção de menções a uma marca nas redes sociais em relação a seus concorrentes) com métricas de confiança, autenticidade e reputação ESG. O resultado é um retrato dinâmico e multifacetado da marca, que mostra não apenas sua visibilidade e desempenho em tempo real, mas também a profundidade do engajamento com públicos estratégicos, a solidez de sua credibilidade e a coerência entre discurso e prática nos temas que importam para a sociedade.
A terceira abordagem, já em uso em diversas organizações e que tende a se consolidar como um verdadeiro eixo de reinvenção, é a que incorpora IA para automação e análise preditiva.
As empresas de pesquisa tradicionais entenderam que recorrer a fornecedores externos para oferecer esses serviços — assim como os de social listening — significaria esvaziar o valor de suas próprias entregas. Por isso, passaram a integrá-los diretamente em seus portfólios, ampliando sua relevância e capacidade de competir em um cenário em rápida transformação.
Um exemplo brasileiro de uso de IA nas análises é o da plataforma de pesquisa MindMiners, que combina pesquisa tradicional e tecnologia para automatizar a classificação de respostas abertas e extrair temas e insights estruturados em questão de segundos.
A própria Kantar, nos últimos dois ou três anos, intensificou de forma significativa o uso de IA em análise, automação e predição em seu portfólio. Seus produtos tradicionais, como Link, BrandDynamics e BrandHealth, já incorporam a tecnologia de maneira consistente.
A derrocada do oligopólio e a libertação do marketing
Para além das tradicionais empresas de pesquisa, já são inúmeras as startups que oferecem métricas de reputação, inclusive estabelecendo benchmarking e antecipando crises. Isso sem contar com as especulações de social listening e coleta estatística de dados mais caseiras, que, de alguma forma, democratizam ainda mais esse cenário.
A norueguesa Meltwater oferece o Radarly®, uma plataforma de insights alimentada por IA para reputação de marca, que integra dados de redes sociais, blogs, notícias, fóruns e outras fontes, transformando menções em percepções estratégicas.
Outra empresa conhecida no setor é a Talkwalker, de Luxemburgo, que se define como uma “consumer intelligence platform”. À sua maneira, fornece as mesmas métricas que a Meltwater e ainda oferece a análise de vídeos por meio da ferramenta Blue Silk AI®.
Ambas as plataformas oferecem licenças de uso que podem ser geridas por assistentes, gerentes e executivos das próprias marcas contratantes. Além disso, por estarem sediadas em centros tecnológicos de excelência, disponibilizam o que há de mais atual no estado da arte no segmento analítico.
O segmento que nem bem mudou, já vai mudar de novo
Estamos a um passo de uma nova guinada na forma como se mede reputação e saúde de marca via social listening.
Plataformas como a Sqreem®, de Singapura, que opera com poder de processamento acelerado por GPU (sigla em inglês para unidade de processamento gráfico) e arquitetura quântica, já entregam o que chamo de inteligência “industrializada” reputacional de marca. Isso porque elas são capazes de processar e interpretar volumes massivos e impensáveis de dados sociais, de consumo e de navegação em tempo real — e recorde.
Essa capacidade combinada com modelos avançados de IA e parcerias estratégicas, como a estabelecida com a consultoria Qantm AI, de IA analytics, permite que marcas capturem não apenas a fotografia do momento, mas o filme contínuo de como sua reputação se constrói e se transforma a cada segundo. Isso lhes permite identificar padrões emergentes antes mesmo de uma crise ou oportunidade ganhar corpo.
O desafio é que, nesse novo jogo, o tempo para reagir encolheu, o investimento necessário explodiu e a barreira tecnológica nunca foi tão alta. Quantum computing e IA generativa mudaram a lógica de competição: não se trata mais de quem tem a melhor metodologia, mas de quem detém mais poder de processamento, mais dados e mais capacidade analítica para cruzá-los instantaneamente.
Onde isso tudo pode parar
A velocidade da tecnologia é brutal, e acompanhar sua evolução no segmento de medição de reputação e saúde de marca exige recursos praticamente ilimitados e um ecossistema de inovação contínuo, que poucas empresas conseguem sustentar.
Mas a verdade é uma só: é possível tomar decisões estratégicas acertadas sobre sua marca a partir de uma quantidade de dados menor e com uma capacidade analítica mais caseira. As próprias agências de publicidade já estão formando equipes de estrategistas, estatísticos e criativos capazes de entregar um excelente deck estratégico de mapeamento de reputação e saúde de marca.
Daqui para frente, quem quiser atuar nesse mercado precisa ter em mente que existem instrumentos digitais acessíveis e de baixo custo para oferecer serviços de mediação de reputação e saúde de marca. No entanto, esse trabalho não se limita mais à análise de dados, exigindo que os profissionais se tornem arquitetos de modelos preditivos.
O valor deixou de estar na coleta e passou a estar na capacidade de correlacionar, prever e agir.
Ulisses Zamboni – Chairman & Sócio
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