24 de Abril, 2025

No marketing, o rei está nu

O tarifaço de Trump atirou para o que viu e acertou para o que não viu: o modelo de branding das marcas globais e de luxo.

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Será que o chacoalhão no tabuleiro de xadrez mundial dado por Trump pode afetar a imagem de marcas globais? É claro que sim!

Vamos apelar para a definição de branding porque é ela que faz funcionar o “cqd” (como queríamos demonstrar) na ciência do marketing. Branding, nada mais é, que todo impacto que uma empresa gera na sociedade e no planeta. Mais que isso, é o que se soma e o que se subtrai de e para ambos.

Uma conta errada que chega nas mãos do indivíduo? Subtrai-se equity. Uma inovação que muda o jeito de se lidar com uma categoria? Soma-se equity. E, por aí vai… É um jogo complexo e contínuo de soma e subtração que dá para as marcas legitimidade (ou não) para atuar como agentes transformadores e aumentar dividendos aos acionistas. 

No entanto, o tarifaço de Trump representa um ponto de inflexão distinto: desta vez, não são os próprios stakeholders que constroem ou destroem o valor das marcas, mas um fator externo — mais basal e sistêmico — que reconfigura uma dinâmica fundamental do marketing: a legitimidade da produção em fábricas chinesas. 

Algo que antes era ignorado ou aceito com alguma naturalidade, agora passa a ser questionado pela opinião pública. A guerra tarifária entre as duas maiores potências do mundo não apenas impacta os custos, mas também desencadeia uma nova consciência sobre o valor real dos produtos e a relação entre marcas e consumidores.

Questionamento da dinâmica fundamental do marketing

No jogo de somar e subtrair, o tabuleiro está dado. No modelo de negócios de bens de consumo de giro rápido (FMCG) as marcas produzem com baixo custo para se esforçar na geração de altas margens, impulsionadas por estratégias de marketing bem executadas. É esse o mecanismo (tabuleiro) que garante não apenas a competitividade, mas a sobrevivência e o sucesso de milhares de marcas pelo mundo.

Com o efeito “pomba no parque” — sim, aquele em que a pomba não apenas pousa, mas ainda faz cocô no tabuleiro dos velhinhos enxadristas —, Trump, meio sem querer, acabou mexendo justamente na parte mais frágil do tabuleiro: produção de produtos com “baixo custo”, onde China é celeiro do mundo. Ao fazer isso, expôs de forma involuntária os artifícios por trás da construção de imagem das marcas dentro da sociedade de consumo.

Desde o início de abril, um fenômeno nunca visto antes no marketing está acontecendo especialmente no TikTok (plataforma prestes a ser banida por Trump). Criadores de conteúdo e fabricantes chineses estão revelando abertamente que muitas das marcas de luxo que fabricam por lá, como Gucci, Prada, Chanel, Fendi, Hermès, Louis Vuitton e Birkin, são vendidas naquele mercado por uma pequena fração do preço. 

As revelações estão sendo feitas através de vídeos virais, filmados nas próprias fábricas chinesas que produzem essas marcas, com chineses jovens e bem informados, desafiando a crença dos consumidores sobre manufatura artesanal, exclusividade e autenticidade das peças. 

O rei está nu

Mais interessante, são vídeos bem produzidos, e muitas vezes bem humorados, beirando uma explícita intenção jocosa de ofender consumidores ocidentais. Um micro documentário sobre o assunto pode ser visto aqui. E também aqui um exemplo no X.

A “tikTokstorm” inteligentemente orquestrada pelos chineses contra o modelo de negócios das marcas de luxo pode — e deve — estabelecer um novo padrão de relacionamento com os usuários dessas categorias de produto. 

O trabalho de branding construído ao longo de décadas por essas marcas europeias, sustentado por uma reputação corporativa cuidadosamente cultivada (um dos ativos intangíveis mais complexos de gerenciar) e pela sensação de escassez (base da estratégia do luxo), está não apenas em xeque — está sendo frontalmente desafiado por um novo discurso de transparência, acesso e desmistificação. 

Elementos do “tiktokstorm”

  1. Exposição das marcas (e das fábricas que as produzem): muitos dos vídeos mostram as peças sendo fabricadas com suas logomarcas, a manufatura (quase sempre feita em máquinas industriais, contrapondo o discurso artesanal das marcas) e, finalmente, a explicação de que os produtos já montados são enviados para França e Itália para finalização, como aplicação de aviamentos e broches do logo, obviamente, costurando um “made in France” ou “Italy” na peça. 
  2. Mark ups no preço final: tiktokers destacam a enorme margem de lucro dos produtos de luxo. Por exemplo, leggings vendidas por US$ 100 nos EUA estariam disponíveis por US$ 5 ou US$ 6 diretamente nas mesmas fábricas chinesas. Bolsas no estilo Birkin, que chegam a custar dezenas de milhares de dólares no varejo, são mostradas sendo oferecidas por menos de US$ 1.400 no atacado.
  3. Ofertas diretas ao consumidor (DTC): alguns vídeos incentivam os espectadores a contornar os canais tradicionais de varejo e as tarifas e a comprar diretamente de fornecedores chineses — o que enfraquece ainda mais a proposta de valor das marcas de luxo.
  4. Estratégia de conteúdo: as campanhas são sofisticadas, combinando conteúdo educativo, visitas a fábricas, detalhamento de preços e até esquetes cômicas. A comunicação é bem construída e posiciona frequentemente a manufatura chinesa como sinônimo de qualidade e transparência — em contraste com a percepção de segredo e superfaturamento que envolve as marcas de luxo ocidentais.

Está mais do que evidente o rebote negativo da estratégia de Trump em preservar e proteger o mercado americano. Na verdade, mais do que o mercado americano, a China está desmantelando o “modus operandi” da dinâmica de se construir marcas e negócios  do Ocidente.     

Impactos: uma nova ordem nos negócios de marketing? 

O rebote de usuários é evidente. Claro que os fãs e os endinheirados ficarão ao lado de suas marcas de luxo, fazendo de conta que o abalo foi superficial, até porque esse público ‘não trabalha pela manhã para alimentar a família à noite’. 

No entanto, um quinhão considerável de usuários de marcas de luxo — de outras marcas chamadas “massivas” (mas que mesmo com esse nome têm ticket médio alto para grande massa populacional), que são fabricadas na China, como a própria Nike, a Apple e a Lululemon — vão precisar rever suas dinâmicas de negócios da manufatura à construção de reputação.

Um trabalho intenso de PR e reposicionamentos estratégicos de marketing devem começar a ser pensados para as marcas globais, até porque um pilar dado como estabelecido — que é o da manufatura — volta a entrar, de forma negativa, no imaginário coletivo dos consumidores. Quem diria que seria essa a origem da próxima revolução industrial? 

Coincidência ou alinhamento dos astros, não sei dizer, nos últimos anos, os consumidores chineses estão comprando bem menos produtos de marcas de luxo internacionais. Há dez anos, a China representava metade (50%) das vendas globais de luxo. Hoje, essa participação caiu para 12%. 

Essa mudança tem várias causas: a economia do país está enfrentando dificuldades, o sentimento de nacionalismo está crescendo e os jovens consumidores estão preferindo marcas nacionais em vez das grifes internacionais. Mas não é só isso: o “aftermath” de que as fábricas chinesas produzem o estado da arte em produtos para o Ocidente faz o consumidor chinês escapar da armadilha do marketing de marcas ocidentais, baseada em imagem percebida e não na reputação de manufatura de fato. 

O que Freud tem a ver com construção de reputação no marketing atual?     

O modelo de marketing que conhecemos vem evoluindo há 100 anos. Ele se dá não só pela somatória dos insumos tangíveis do produto, mas principalmente pelos intangíveis do processo fabril e da “gestalt” de uso na categoria. O valor de arca é construído por meio de uma história bem contada que pode, e deve, gerar encantamento no futuro usuário daquele produto.

O sobrinho de Freud, Edward Bernays, tem grande influência no modelo atual de marketing que conhecemos. Os métodos de Edward Bernays no meio do século 20, lançaram as bases para o branding moderno, no qual a reputação de uma marca é construída não apenas sobre a qualidade do produto, mas também sobre narrativas cuidadosamente elaboradas, ressonância emocional e influência social. 

Bernays foi responsável por trazer a psicologia do processo decisório para o marketing, deixando claro que as escolhas dos consumidores são moldadas tanto por impulsos inconscientes e códigos culturais como pela lógica ou utilidade. 

Ele compreendeu que, para além do conteúdo, era fundamental a forma como a mensagem era apresentada, utilizando estratégias que exploravam desejos, aspirações e até mesmo medos do público, muitas vezes sem que este se desse conta do grau de manipulação envolvido. Bernays mudou fundamentalmente a forma como as marcas abordam reputação e imagem, tornando a gestão da percepção, da emoção e do significado social elementos centrais da estratégia de marketing.   

É o início de uma nova era no marketing? 

Se você ainda viaja para os Estados Unidos com a mala vazia e volta com ela cheia, talvez já esteja começando a repensar seus princípios como consumidor contemporâneo. Entrar em lojas no SoHo ou em West Hollywood, se encantar com a experiência sensorial, com as narrativas bem construídas, e comprar sem pensar no custo real da produção talvez não faça mais tanto sentido — especialmente agora que sabemos, com mais clareza, que o valor percebido pode estar longe do valor real.

No fundo, sempre soubemos disso — mesmo que esse saber estivesse escondido num canto remoto do nosso inconsciente. Mas aceitávamos, quase que com prazer, cair nessa armadilha do desejo. Agora, cabe a pergunta: será que o erro estratégico de Trump foi, na verdade, um empurrãozinho no sentido de um consumo mais consciente? Um estopim para relações mais transparentes entre marcas e consumidores, rumo a um capitalismo mais ético?

E se — ironia das ironias — for justamente a China, por tanto tempo tida como vilã por suas práticas autoritárias e acusações de exploração laboral, a responsável por forçar o Ocidente a revisar seus próprios fundamentos de mercado? São muitas as perguntas que ficam. E eu te pergunto: e você, o que espera do novo jogo?

Ulisses Zamboni – Chairman & Sócio