27 de Maio, 2025

Mark Zuckerberg e o erro de Descartes digital

Ao prometer automatizar toda a publicidade com base em dados e IA, o cofundador e CEO da Meta pode estar revivendo a ilusão racionalista de que marcas podem ser construídas sem emoção, cultura ou intuição — repetindo, em versão algorítmica, o velho erro de separar razão e sentimento

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As falas de Mark Zuckerberg no início deste mês sobre o “desaparecimento da atividade da publicidade como conhecemos” caíram muito mal no mercado publicitário em geral. Quando não caíram mal, levaram profissionais de todos os segmentos da publicidade – de criadores de conteúdo a profissionais de mídia – a refletir e muitas vezes se apequenar à dominação do algoritmo.

A especulação sobre o assunto alimentou tanto teorias objetivas sobre o tema, como criou fantasmas internos, sempre tendo como pano de fundo a ameaça iminente de desaparecimento do ofício mais que centenário do publicitário.

Monopólios são bem-vindos?

Dramas a parte, monopólios nunca são bem vindos. Até há muito pouco tempo, a Rede Globo detinha (e de certa forma ainda detém, mas sem a força de antes) o monopólio da audiência no País e estabelecia uma relação ambivalente – jamais explícita – com o mercado publicitário de amor e ódio. Por quê? Simples: porque as mãos invisíveis do monopólio mexiam nas entranhas das regras de mercado.

Para os “velhos de guerra” como eu, é mais do que sabido que a Rede Globo acabou sendo peça-chave para o desenvolvimento do mercado publicitário no Brasil e protegeu todos os players na manutenção ética do ecossistema da publicidade. Mas poderia não ter sido assim. 

Não vale a pena entrar aqui na discussão dos benefícios e malefícios da já velha relação monopolista analógica no mundo da publicidade brasileira, mas é boa ideia, isto sim, falar dessa nova condição monopolista do mercado digital sob Zuckerberg. Agora, com foco na realidade nova: se antes as emissoras tradicionais não podiam ter relações comerciais diretas com os anunciantes, seja por regulação da lei ou até mesmo por uma regulação moral, as plataformas digitais agora podem.   

Calma, calma. Espere só um pouquinho para julgar essa minha última frase, inclusive porque Zuckerberg, e todas as demais plataformas digitais, têm nas mãos a gestão completa (e de maneira instantânea) do comportamento de usuário, coisa que o mundo analógico não tinha e, por isso, pode dar esse passo de certa independência.

Do ponto de vista do CRO (sigla para otimização da taxa de conversão, em inglês), Zuckerberg tem razão: sua proposta automatizada é eficiente, direta e pode prescindir, tecnicamente, da intermediação de agências. Mas ao reduzir toda a estratégia publicitária à lógica imediatista da conversão, ele ignora um campo subjetivo essencial: justamente aquele capaz de agregar valor, construir marca e sustentar margens no longo prazo.

Ao preterir a colaboração com profissionais e agências que pensam a marca como um ativo simbólico, ele não apenas desconsidera a crítica construtiva de um segmento experiente em gerar valor, como adota uma postura autorreferente, quase infantil: “o brinquedo é meu”.

O problema não é só moral — de se fechar ao contraditório — mas estratégico: ao desprezar essa camada subjetiva, Zuckerberg abre mão de potencializar o próprio CRO com inteligência crítica e valor intangível. No fim das contas, essa escolha compromete não apenas o discurso ético, mas a sofisticação do pensamento de negócio.

Miopias

Será que algum de nós já se esqueceu que a mais desastrosa previsão sobre o futuro de curto prazo da tecnologia veio da própria empresa que ele lidera? Uma previsão tida como certa e tão definitiva que o fez mudar de nome em outubro de 2021?

De acordo com conteúdo publicado em janeiro de 2025 pelo site Statista, o prejuízo acumulado da Reality Labs, empresada Meta responsável pelo desenvolvimento das tecnologias do metaverso, é, de lá para cá, de US$70 bilhões, sendo que o pior desempenho foi em 2024. 

Tudo bem que, em outubro de 2021, se dissociar das polêmicas envolvendo o nome “Facebook”  – como escândalos de privacidade e desinformação – não era nada mal, mas apostar num nome sugestivo de metaverso já nos dá uma pista inequívoca de que os exercícios de futuro de “Zuck” possam estar mais atrelados ao seu lado adolescente-emocional do que a sua maturidade nos negócios.   

A declaração feita por Zuckerberg ao jornalista Ben Thompson do podcast Stratechery denota uma miopia dupla sobre sobre propaganda. Diz ele: “Na prática, vamos chegar num ponto em que, se você for um negócio, chegue para nós e diga seus objetivos. A gente vai só se conectar com sua conta bancária e entregar o resultado. Você não vai mais precisar de profissionais criativos, target demográfico, etc”. 

Miopia nº 1: a questão egóica e a questão ética

É claro que com o estágio atual e de curto prazo da IA é possível que a Meta consiga assumir todos os papéis que quiser na publicidade. No caso do ecossistema publicitário, ela tem condições de assumir o papel de criador, executor, veiculador e avaliador de resultados, com isso, ela também acaba se colocando acima de qualquer instância crítica, supervisão e aferição externa de resultados. A questão aqui passa a ser não apenas técnica, mas ética.

Pressupor ser a melhor resposta para alavancagem dos negócios de clientes e marcas é, além de ignorar o valor agregado do mercado publicitário, também desprezar a pluralidade de soluções que emergem a todo instante no ecossistema digital.

[A Meta] Pressupor ser a melhor resposta para alavancagem dos negócios de clientes e marcas é, além de ignorar o valor agregado do mercado publicitário, também desprezar a pluralidade de soluções que emergem a todo instante no ecossistema digital

Um exemplo de como opções são sempre bem vindas, vamos olhar diretamente para um dos maiores competidores da Meta que é o X, especialmente no que Elon Musk está fazendo com o xAI, sua empresa de inteligência artificial fundada em 2023.

Uma das grandes peculiaridades da xAI é a integração do Grok, seu modelo de IA, com o X, permitindo acesso a dados e postagens públicas em tempo real. Isso faz com que o algoritmo do Grok forneça respostas e análises sempre instantaneamente atualizadas, captando tendências, opiniões e acontecimentos no exato momento em que ocorrem, algo que outras plataformas de IA ainda não conseguiram replicar.

Ademais, o X se destaca como a principal plataforma dos opinion leaders que existe: além de reunir líderes mundiais e grandes atores do mundo dos negócios, impressionantes 18% dos seus usuários ativos possuem renda anual superior a US$ 1 milhão, evidenciando um público altamente influente e qualificado.

Portanto, preterir agências de publicidade não é apenas um erro de visão sobre a contribuição simbólica do ofício criativo. O verdadeiro risco de seu pensamento está em uma lógica centralizadora que compromete um dos pilares mais valiosos do capitalismo contemporâneo: a livre concorrência de ideias, soluções e abordagens de mercado.

Ao agir como juiz único de sua própria performance, Zuckerberg não está apenas desafiando a estrutura ética do ecossistema da comunicação, mas está flertando com a supressão da diversidade estratégica que sustenta a inovação e o progresso dos negócios no ambiente digital. 

Miopia nº 2: algoritmos nunca vão reproduzir o inconsciente freudiano

É óbvio, mas é bom reforçar. Algoritmo, por mais sofisticado que seja, é uma construção lógica, racional e determinística que mimetiza os movimentos humanos. Seu objetivo é otimizar resultados mensuráveis, filtrando e organizando informações de acordo com parâmetros definidos, geralmente para maximizar engajamento, retenção ou conversão.

Pressupor que algoritmos possam “substituir” ou “clonar” o inconsciente é ignorar a riqueza do imprevisível e do espontâneo. O algoritmo, por definição, busca eliminar o acaso e reduzir a incerteza, enquanto o inconsciente é justamente o espaço onde o inesperado emerge, onde o novo pode surgir sem planejamento ou cálculo. A criatividade genuína, os grandes saltos de intuição e os encontros fortuitos (serendipidade) são fenômenos que escapam à lógica algorítmica.

Afirmo que a publicidade tem o poder de deslocar atenção do cérebro dos indivíduos do lobo central (algorítmico) para o límbico (prazer, emoção e sobrevivência). Consegue identificar insights, ler comportamentos invisíveis, traduzir a dispersão do caos, encontrar sentido no não-dito. E, com isso, estabelecer relações e vínculos ao mesmo tempo que fortes, perenes. Estamos falando de valor agregado e sustentabilidade.

Por mais que defendam que a IA em seis anos será mais inteligente que a soma de toda inteligência humana, ela não deverá escapar do confinamento dos critérios que a construiu. A criatividade genuína, os grandes saltos de intuição e os encontros fortuitos (serendipidade) são fenômenos que escapam à lógica algorítmica.

Sigmund Freud e Jacques Lacan de um jeito, e Carl Jung de outro ainda mais poderoso, trouxeram para discussão comportamental a leitura dos símbolos e signos da sociedade, nas suas representações individuais e coletivas inconscientes que estão escondidas em nossas mentes e, melhor, repletas de significados. E, se aventuraram na máxima de que o não-dito tem significado. E é aí que a publicidade consegue penetrar no tecido social.

O algoritmo filtra e organiza a realidade mas o inconsciente a reinventa e a subverte. Enquanto o primeiro é ferramenta de controle e previsibilidade, o segundo é fonte de surpresa, ruptura e transformação. Reconhecer essa diferença é essencial para não confundir a lógica das máquinas com a complexidade – e a beleza – da experiência humana e, por consequência, tarefa inescapável da publicidade na construção e sustentabilidade das marcas.

O erro de Zuckerberg reedita o de Descartes

O erro de Zuckerberg é, em essência, uma reedição tecnológico-digital do erro de Descartes, apontada no estudo de António Damásio em 1994 em que ele demonstra que as tomadas de decisão dos indivíduos não são eminentemente racionais, mas contam com o contexto emocional, com o inesperado.

Ao propor que bastaria conectar uma conta bancária (dos anunciantes) para que a Meta automatize todo o processo publicitário, da criação ao placement de mídia com a certeza do dinheiro caindo na conta do banco, Zuckerberg parte da premissa de que decisões de comunicação podem ser tomadas com base apenas na lógica, dados e desempenho. Mas, concordando com o que apontou Damásio, posso afirmar que publicidade de resultado não é apenas cálculo; é intuição, afeto e cultura.

Ignorar isso é acreditar que marcas se constroem por equações, quando, na verdade, elas nascem de vínculos simbólicos entre as pessoas e seus símbolos e signos. Substituir esse processo por critérios algoritmos é insistir em um modelo cognitivo que, no fundo, revela uma profunda incompreensão do que torna uma marca memorável, forte e sustentável.

Tratar publicidade como Zuckerberg acredita ser possível é, em última instância, empobrecer a sociedade.