Uli Zamboni – Sócio Fundador & Chairman da Santa Clara
Já há algum tempo eu não via a boa energia e vibração de uma economia pujante e fluida como vi neste início de ano, aqui em Nova York, nas palestras da NRF 2024, o grande evento do varejo mundial.
Depois de um 2023 que se mostrou muito melhor do que as previsões dos analistas de mercado para a economia americana – vamos lembrar que havia o fantasma de recessão técnica nos Estados Unidos -, o setor varejista mostra uma atitude invejável e promete uma performance na mesma medida.
Talvez essa impressão positiva que testemunhei esteja borrada pela realidade oposta brasileira, onde sempre precisamos pular uma série de barreiras – a barreira de falta de recursos, a barreira de um país caro, a barreira da complexidade e robustez da carga tributária.
Este artigo traz boas notícias para quem trabalha com marketing, porém, talvez também no Brasil. O varejo de vanguarda, o “through channel”, aquele em que o indivíduo pode comprar onde e como quiser, precisa desesperadamente do apoio dos marqueteiros e profissionais de comunicação para se posicionar.
UBIQUIDADE: BEIS TRAVEL E GLOSSIER
A ideia de que a loja representa o negócio de varejo evaporou de vez neste último ano. A ubiquidade da presença de marca na vida do usuário, seja conversando com ele, apoiando-o, participando de sua vida ou, finalmente, lhe vendendo algo, é o mais recente conceito do que é um negócio de varejo hoje.
Senão vejamos. De acordo com Charles Krell, COO do Iguatemi Empresa de Shoppings Centers, a lição clara desta NRF 2024 é a necessidade de as empresas terem um posicionamento claro na cabeça do consumidor. E Luiz Marinho, um dos maiores especialistas em shopping centers do Brasil, da GouveiaMalls, confirmou em artigo que “a evolução dos canais de compra pode mudar o jogo de vez, para varejistas e shopping centers” – e, no jogo novo, dá para falar que o varejo passa a se apoiar no binômio “tecnologia e atitude de marca” – contanto que o maestro da nova operação seja o consumidor, naturalmente.
Uma keynote session da NRF 2024 que trouxe muito bem esse insight foi a intitulada “Retail Disruptors: A conversation with Spotify president Harley Filkenstein, BÉIS Travel founder and chief brand officer Shay Mitchell and Glossier CEO Kyle Leahy”.
O papo de Filkenstein, Mitchell e Leahy foi informal, leve e “de vanguarda”. Nem vou falar mais sobre o “customer centricity model” porque ele é default nos negócios mais modernos de varejo. Vou apontar, isto sim, similaridades entre as marcas que explicam o sucesso no mundo atual.
Escolhi focar as marcas BÉIS Travel e Glossier, porque são um fenômeno do varejo atual e têm muito a nos ensinar sobre como se faz marca nos dias de hoje. Com apenas cinco anos de existência, a BÉIS Travel é uma empresa de bolsas e acessórios que já fatura US$ 200 milhões por ano; vale dar um busca para entender melhor do que eu estou falando. E a Glossier, igualmente jovem no mercado, é a número 1 em vendas de maquiagem e cosméticos em muitos segmentos, queridinha da Sephora – quem acompanha o setor sabe que se esgota com muita facilidade nas lojas. Ambas estão incomodando empresas centenárias nos seus segmentos de negócios.
Para além de “customer centricity”, ambas as marcas enxergam conteúdo e mídias sociais como estratégia de negócios. A BÉIS desenvolve produtos a partir das resenhas e postagens de seus colaboradores. A Glossier nasceu do Blog IntoTheGloss.com já com milhares de fãs, escrito por sua fundadora, Emily Weiss. A realidade de interferência e poder do usuário no destino e nas próprias ofertas das empresas é um “must” na realidade de varejo atualmente.
QUATRO CARACTERÍSTICAS – E UMA QUINTA
Aponto, a seguir, quatro similaridades entre as marcas que explicam seu sucesso. A meu ver, elas não acontecem por acaso:
A personalidade de marca é claríssima. Tanto em BÉIS Travel como em Glossier, essa personalidade a visão de mundo das fundadoras de ambas as empresas – Shay Michel e Emily Weiss –, que conseguem capturar e usar o zeitgeist do momento no segmento. Shay Mitchel, da BÉIS, é inclusive a modelo (literalmente) de seu site. Egotrip? Talvez, mas, sem vergonha alguma, ela se equipara às usuárias da marca e revela seus gostos e desejos abertamente para suas usuárias.
O modelo de negócio é DTC – direct-to-consumer -, com pouca inclinação a se comprometer com o varejo de tijolo-e-cimento. Lojas pop-ups, estas sim, são excepcionalmente bem-vindas e constroem imagem de marca. Mas ambas as marcas estruturaram seus negócios na web, seja em plataforma de mídias sociais ou em e-commerce. Fundaram seus negócios a partir do aval de usuário e não da construção arquitetônica de uma loja.
Tecnologia e inovação respondem pela propulsão do negócio. O comportamento de testar as coisas ilustra isso muito bem. Kyle Leahy, da Glossier, contou, por exemplo, que pede para a Shopify ser beta tester nas tecnologias de comércio digital da empresa. Já Shay Mitchel usa os recursos de ‘insta live’ e streaming retail para seus lançamentos e beta testes de produtos.
Agilidade em mudar de rumo de acordo com o dinamismo do mercado. E isso não vale só para lançamento de produtos; aplica-se à gestão do próprio negócio. A BÉIS teve que aprender a se transformar logo no primeiro ano do negocio, 2018, 1 ano antes da pandemia que impediu as pessoas de viajar. Essa transformação está intimamente ligada à sabedoria em saber receber críticas e a partir delas, mudar o rumo da empresa.
Sabe a Crocs, aquela marca de sapatos de plástico que despertou tanto “ame ou odeie” no passado? Está revivendo seus negócios nos Estados Unidos e o faz com estratégias similares às de Glossier e BEIS, com uma adição importante – os collabs. Esse é o quinto elemento que quero trazer aqui.
Colaborações também nas marcas terrenas. Nunca ouvi tanto sobre isso no varejo como nesta NRF. A estratégia de fazer ‘colaborações’ sempre pertenceu ao mundo da moda e das marcas de luxo, mas definitivamente parece ter se transferido para as marcas mais terrenas como uma estratégia de varejo moderna. Vai desde um mix de licenciamento com intervenções em produtos até a criação de novos serviços e produtos da marca.
No caso da Crocs, foi com essa estratégia que ela voltou ao mercado americano com tudo. Os usuários da marca pedem novas Collabs, usam jeitos criativos de modificar os produtos básicos da empresa e ‘brincam’ com os produtos em seu lifestyle. Ou seja, Crocs entra na conversa.
Um exemplo de como a estratégia gerou sucesso é o resultado do collab da Crocs com a marca de luxo Ballenciaga, que resultou em um sapato chamado HardCrocs Balenciaga. Sabe quanto ele custa, hoje, em preço de marketplace? A bagatela de US$ 1.190.
RARAMENTE FAÇO afirmações do tipo “tudo ou nada” no marketing e na comunicação, mas, desta vez, eu me sinto obrigado a adotar esse caminho: varejista que ainda conta fortemente com a loja e suas prateleiras físicas como a grande definição de seu negócio está fadado a morrer no curto prazo. A NRF 2024 deixou essa mensagem claríssima. Agora, enquanto faz a mudanças necessárias, curta o momento. Seja feliz.