15 de Abril, 2024

Lideranças, IA e a síndrome de Benjamin Button

Há sinais de que a inteligência artificial tem deixado os gestores seniores inseguros, com medo e ansiosos como adolescentes; cinco desafios se impõem como os principais, e é preciso vencê-los o quanto antes

COMPARTILHE
COMPARTILHE

Uli Zamboni – Sócio Fundador e Chairman da Santa Clara

“A solidão é o sentimento mais constante e presente na vida dos líderes.” Quem de nós não ouviu essa máxima? No entanto, a solidão não está mais sozinha.

Em minha experiência como psicanalista trabalhando com executivos da alta gestão de empresas em geral e com o C-level de grandes corporações especificamente, tenho observado que a solidão continua lá, majestosa e imaculada, mas agora vem acompanhada por um tormento não menos relevante – a ansiedade.

É claro que o confinamento nos anos de covid-19 e a ronda da morte causada por ela foram gatilhos importantes para o desequilíbrio da psique de muita gente. No entanto, arrisco dizer que a realidade dos altos executivos se pavimenta por outro caminho.

Não vou entrar em grandes divagações psicanalíticas, mas você certamente já ouviu falar das condições mais comuns associadas à ansiedade como a síndrome do pânico, a desordem obsessivo-compulsiva e o estresse pós-traumático, certo? Então, vou dar só umas pinceladas no assunto em nome do didatismo.

Essas condições são apontadas na bibliografia da psicanálise como ‘neuroses contemporâneas’, um conceito trazido pelo próprio Freud no início do século 20. Resumida em apenas um parágrafo, a “neurose contemporânea” é um termo aplicado na psicanálise que define a manifestação de sofrimentos psíquicos causados por uma combinação de vetores da vida cotidiana no presente. E, no nosso presente, haja caos, vamos combinar…

A neurose contemporânea é diferente das neuroses clássicas de Freud, que também defino aqui num ”tweet“: são aquelas desordens psíquicas geradas por agentes parentais, familiares ou até por amizades próximas, principalmente durante a infância.

Não menos importantes, as neuroses contemporâneas também justificam acompanhamento terapêutico, muitas vezes consorciado com tratamento médico, se os sintomas alcançarem a patologia.

Nem sempre foi assim, mas atualmente essas desordens estão de alguma forma lastreadas na percepção contemporânea de alta velocidade do tempo das coisas, a qual a inteligência artificial, de alguma forma, reforça com maestria.

Resolvi compartilhar alguns pensamentos sobre o assunto porque nunca estiveram tão em evidência os benefícios atrelados à economia de tempo com a escalada exponencial da IA e suas ferramentas modernas. Produtividade e performance, promessas altamente cobiçadas pelos executivos de alta gestão, traduzem bem as ofertas tentadoras da IA. É a promessa de “hackeamento” do tempo, oferecendo a possibilidade de alcançar resultados superiores em períodos mais curtos.

Contudo, essa busca incessante pode intensificar o estresse e o sofrimento psíquico entre os líderes e executivos na produção da mente ansiosa. Verdade seja dita: a velocidade nos negócios inebria lideranças e, ao mesmo tempo, as adoece.

Lideranças adoecidas

As cobranças de ordem protocolar nos negócios, vindas da concorrência de mercado e do velho capitalismo de shareholder, são uma constante e moldaram o comportamento dos executivos no mundo ocidental.

Acontece que o pacote da paranóia corporativa só tem aumentado de tamanho. O crescimento da insatisfação entre o binômio “performance X produtividade”, a pressão para adotar IA a qualquer custo e o excesso de informações sobre ofertas tecnológicas inovadoras estão gerando ansiedade para além do normal nos decisores das empresas.

Porém a explosão cambriana tecnológica que presenciamos hoje, que vai da transformação digital à própria inteligência artificial, traz consigo um problema subjacente à ansiedade que também merece atenção. As novas tecnologias carecem de benchmarks – ou boas práticas do passado. É aí que mora grande parte do problema.

O modelo mental de um líder mais maduro tende a não se voltar para o futuro, e sim para o passado, à medida que ele utiliza suas próprias experiências como a base para a tomada de decisões. É um comportamento que contrasta fortemente com a natureza inovadora e ainda não testada de novas estratégias e tecnologias, que carregam consigo um alto risco de falha em sua implementação.

Tais inovações desafiam radicalmente o paradigma tradicional de formação e desenvolvimento de carreira executiva, que se apoia em “track records” e um vasto repertório pessoal. Essa mudança coloca o líder — um profissional cuja carreira foi construída sobre os sucessos passados e que estabeleceu padrões de referência no mercado — em uma posição desconfortável, desafiando diretamente sua maneira habitual de validar decisões.

Impõe-se um novo jeito de trabalhar, que é olhar para o futuro.

A voz interna das lideranças grita desconfortavelmente aquele velho ditado dos negócios “o que te trouxe aqui, não te levará adiante”. Joga um enorme conjunto de inseguranças de volta à psique dos executivos como se eles tivessem voltado no tempo e se tornassem, de novo, trainees adolescentes em suas próprias empresas, numa espécie de síndrome de Benjamin Button de carreira. (Se você não viu o filme a que me refiro, clique aqui.)

Nada do frescor da pele jovem. Aplicada na carreira, a síndrome traz ao repertório comportamental do líder sentimentos como medo, insegurança, dúvida, raiva, incerteza e culpa, gerados pelo desconhecimento do novo e, pior, pela perspectiva de que sua força de trabalho em níveis hierárquicos inferiores (e bem mais novas) possam ter até mais conhecimento e ‘savviness’ sobre as tecnologias do que eles.

O que está em jogo? A sustentabilidade do negócio e a do próprio executivo.

Se consegue de fato atuar sobre o gestor, a síndrome de Benjamin Button pode fragilizá-lo e de alguma forma infantilizá-lo diante de questões novas e mais modernas da tecnologia, enquanto seus jovens comandados, mais permeáveis ao novo, navegam mais naturalmente nesse ambiente.

Cinco desafios para a alta gestão

É claro e cristalino que estamos num período de transição de modelos de negócio e de modelos de gestão, e que isso acontece graças à tecnologia.

A futurista Amy Webb, CEO da Future Today Institute, em seu mais recente relatório de tendências tecnológicas divulgado na SxSW, diz claramente que os agentes de negócios de hoje estão coletivamente preocupados com as mudanças e o futuro do trabalho.

E conceitua toda essa turma de Geração T (Transformation Generation), que é aquela que reconhece que todos estamos passando por uma transição. Quanto maior o nível hierárquico, mais profunda tem de ser a transformação.

Minha observação como psicanalista de altos executivos do mercado brasileiro ao longo desses anos aponta para ao menos cinco conflitos recorrentes nos líderes e que tenho trabalhado no consultório:

1. Tomada de decisão prejudicada em meio à sobrecarga de ofertas tecnológicas. O lançamento em série de aparatos e processos tecnológicos para empresas trazidos pelas novas tecnologias estão causando uma certa paralisia entre os líderes. Ou, pior, gerando atitudes legitimadas pelo famoso FOMO (o medo de ficar de fora, em inglês).

2. Apreensão, incerteza e dúvida. Enquanto o “track record” e a experiência do passado eram o porto seguro da alta gestão, o futuro (e as tecnologias emergentes) se colocam como elementos-chave para o sucesso no novo recorte profissional. Qual seria esse novo porto seguro? O apetite ao risco é uma característica obrigatória do gestor moderno?

3. Redesenho das carreiras para manter relevância. “Logo agora que estava estável, num vôo de cruzeiro, esse novo cenário com novas tecnologias está me fazendo rever meu futuro”. O desafio é se adaptar a novos papéis e expectativas da organização e manter relevância, uma questão não prevista no período de maturidade de gestores. Lifelong learning é a resposta?

4. Ameaças objetivas de todas ordens impedindo alcançar metas de curto prazo. Os líderes estão lidando com problemas ainda mais complexos nos negócios, seja em Supply Chain, sustentabilidade (com metas de descarbonização) e até ameaças mais pessoais com as de serem substituídos por líderes mais jovens ou, como queriam, contemporâneos.

5. Ameaças subjetivas aparecem com o mesmo nível de importância que o negócio no longo prazo. O foco da liderança tem se deslocado dos desafios puramente de negócios para uma infinidade de outras ameaças do mundo contemporâneo, especialmente a do ‘cancelamento’ público do negócio (e de suas marcas) por razões de racismo, gênero, sexualidade, ética empresarial, práticas trabalhistas, responsabilidade pelos atos dos fornecedores, reputação de marca e por aí vai.

Não dá para se esconder mais deste novo mundo: tecnologia rompendo a norma com muita velocidade, desafios até onde não existiam no passado por todo lado e o inesperado se tornando a única variável constante.

Aceitação e colaboração

Lisa Su, CEO da empresa de microprocessadores AMD, diz que a IA está e vai ficar no epicentro dos eventos tecnológicos pelos próximos dez anos. É a tecnologia que carrega as promessas mais desejadas pelos gestores atuais: otimizar tempo, aumentar a produtividade e diminuir custos. Não por acaso, todos desejos diretos ou indiretos de hackear o tempo.

Contar com equipes internas ou terceirizadas da geração Z e até da geração Alfa (daqueles indivíduos nascidos a partir de 2010) formando “squads” criativos de resolução de problemas pode ser uma das várias respostas corporativas alinhadas com um mercado mais contemporâneo.

Os líderes têm de aceitar este mundo empresarial transformado e pedir ajuda. Pedir para quem? Talvez os ajudantes estejam debaixo do nariz dos gestores, em suas próprias empresas. Basta olhar com mais atenção.