Ulisses Zamboni
Sócio Fundador e Chairman da Santa Clara
Para os profissionais do segmento de marketing e comunicação, os últimos 10 anos de profissão foram uma espécie de divisor de águas. Para os que acreditavam que “a vida já estava ganha”, e que o aprendizado para o exercício de suas carreiras seria apenas incremental, a decepção foi grande. O marketing e a comunicação evoluíram tanto que já não é mais possível um único profissional dar conta de amarrar “todas as pontas” da estratégia para uma marca ou um negócio.
O marketing atual acompanhou passo a passo a exponencialidade da tecnologia, até porque ela é o próprio vetor de mudança para o segmento. Por isso, podemos afirmar que as avenidas estratégicas abertas no passado são hoje praticamente inócuas e estão completamente obsoletas. Elas já ficaram mais para a história do que para a memória e repertório dos profissionais atuais.
Nos últimos meses, tive a oportunidade de falar aqui neste blog sobre a economia comportamental nas estratégias atuais de marketing, sobre o mundo BANI que atinge o mercado e seus indivíduos, sobre as plataformas do mundo digital, a construção de valor para as marcas e mais um punhado de pautas do marketing contemporâneo. E confesso que nenhum desses e de outros conceitos tidos como novos e atuais que serão abordados neste blog podem ser escritos em pedra. A cada dia uma nova práxis tecnológica aparece e muda o “status quo” do segmento. Usando um clichê de Sócrates, “só sei que nada sei”.
Dito isso, este texto nada mais é do que uma espécie de tributo ao conhecido pai do marketing, o professor Philip Kotler, que acaba de lançar seu mais recente livro, Marketing 5.0 – Technology for Humanity, com seus parceiros habituais, os marqueteiros indonésios, naturalizados americanos, Hermawan Kartajaya e Iwan Setiawan da consultoria MarkPlus Inc.
Vale o destaque que Kotler é conhecido pela sua jornada como professor na Kellogg School of Management. No entanto, ele também fez diversos outros cursos, seja em matemática ou ciências comportamentais, em várias outras instituições, sendo que seu PhD, este em economia, foi feito na MIT Sloan School of Management.
A história do Marketing, bem contada, por Kotler.
Com 90 anos de idade, Kotler não deixou de acompanhar a evolução tecnológica que atravessa nossa sociedade e que fez o marketing saltar degraus exponenciais. Ao contrário, seguiu passo a passo cada momento do “trading” dos negócios e conseguiu traduzir com uma simplicidade, que chega a ser constrangedora de tão óbvia, todas as fases do marketing e as jornadas de consumo do usuário ao longo dos tempos.
Lá em 1968, quando lançou o livro Administração de Marketing, Kotler conseguiu definir o marketing como conhecemos até hoje. De acordo com ele, marketing é o conjunto de ações de planejamento, supervisão e controle das estratégias mercadológicas em uma empresa. E, mais que isso, ousou na definição, trazendo um conceito sociológico (o do desejo dos indivíduos) para essa equação. “Marketing é a ciência e a arte de explorar, criar e entregar valor para satisfazer as necessidades de um público-alvo com geração de lucro para empresa”.
Assim como a economia comportamental hoje mistura economia e psicologia dos indivíduos, Kotler foi o primeiro a levantar a hipótese de que os negócios deveriam valorizar as pessoas e seus desejos em sua equação. E, com isso, sustentou que marcas deveriam entregar “valor agregado” e não apenas a concretude do que realmente são. Graças a ele, a publicidade e as relações públicas acabaram se tornando as ferramentas que são hoje.
O marketing 2.0 pontuou com maestria que as marcas tinham nas mãos a possibilidade de customização nas ofertas a partir do conhecimento funcional e emocional do usuário a partir das estratégias de CRM (ainda analógico) que se colocavam à disposição na época. Na verdade, mais do que isso, o marketing 2.0 foi um período histórico para o marketing finalmente começar a admitir que o poder está saindo da mão das empresas e suas marcas e que estava chegando às mãos dos consumidores. Vale aqui o destaque que um dos expoentes do marketing baseado na relação marca versus pessoas foi Seth Godin, que escreveu o “permission marketing” e que deu origem às estratégias digitais de hoje.
No livro Marketing 3.0 – as forças que estão definindo o novo marketing centrado no ser humano, Kotler deixa claro que as marcas devem agir como pessoas e olhar para as demandas da sociedade de uma forma coletiva de ordem filosófica. Sua visão atenta à evolução tecnológica e à comoditização dos produtos e serviços, levou o autor a se expor ao risco: o de falar de espiritualidade e comunhão num livro de marketing.
Quando li Marketing 3.0, ainda estava imbuído do poder das corporações sobre os indivíduos, afinal de contas, iniciei minha carreira no início da década de 1980, auge do jogo de empurra de produtos no mercado. E fiquei chocado com a ousadia do mestre.
E tudo deve mudar de novo.
O Marketing 4.0 trouxe em seu conteúdo uma máxima importante. A tecnologia pode aproximar as marcas dos indivíduos se bem usada. Dar visibilidade ao negócio e às marcas por meio das novas plataformas de mídia seria o novo “quantum leap” das organizações no sentido de terem mais visibilidade e conhecimento.
E, mais uma vez, ele não errou. Deu como certa a perspectiva do mundo digital no futuro do marketing e de como faremos negócios daqui para frente. Mais que isso, apontou que o estreitamento das relações entre negócios e pessoas por meio do mundo digital iria se somar – e não dizimar, como muitos outros gurus previram – ao tradicional mundo offline da TV aberta, rádio e jornais.
Kotler prediz que a revolução digital se coloca como ambiente inexorável da transparência e de relações diretas entre iguais – marcas e gente – portanto, coloca as marcas como uma interlocutora diplomática na relação. As marcas passam a ser intermediadoras nas conversas. Por isso, sujeita a uma série de críticas positivas e negativas. Como todos sabemos, as pedras que consumidores jogam nas empresas por conta de atitudes pouco alinhadas com o padrão atual da sociedade, geram as famosas crises nas plataformas: os famosos twitterstorms ou facebookstorms que vemos hoje em dia).
Não bastasse a mudança nas relações entre as empresas e seus usuários, chega um novo e promissor marketing também completamente alicerçado na tecnologia. O marketing 5.0, que acelera as relações entre objetos. Será que o famoso desenho animado dos anos 1960, Os Jetsons com suas maravilhas tecnológicas, carros que voam, casas que se limpam autonomamente, estradas seguras, e mais um punhado de facilidades, se tornarão realidade 70 anos depois?
O marketing 5.0 é o da internet das coisas. A chegada da tecnologia 5G à maior parte das cidades do mundo e, estreando definitivamente em julho de 2022 no Brasil, vai agilizar essa quinta onda do marketing, de acordo com Kotler.
Blockchain (segurança nas atividades do dia a dia), inteligência artificial, processamento de linguagem, toda interação robótica nas indústrias, realidade aumentada e virtual, reconhecimento de face e muitas outras tecnologias serão a cereja do bolo no conceito de customer experiência ou no jargão marqueteiro, o CX. Essa é a grande nova revolução de acordo com Kotler.
As estratégias pensadas em agradar o usuário daqui para frente, contarão com a tecnologia de altíssima velocidade para surpreender com total instantaneidade as vontades dos consumidores, já que máquinas “falarão” com máquinas num milionésimo de segundo. Desde carros autônomos que trarão a segurança absoluta para não atropelar um transeunte até a certeza de podermos ter nas mãos os produtos mais baratos e, nem por isso, com menos qualidade. Essa é a revolução pretendida pelo mundo dos negócios e pela visão de Kotler.
People Centric Marketing: não é uma novidade, mas uma realidade.
Outra questão absolutamente brilhante do livro Marketing 5.0 é a nova abordagem do usuário no sentido de conhecê-lo melhor. Até o marketing 3.0, os atributos amplamente estudados pelo marketing eram os demográficos e psicográficos (suas emoções e seus comportamentos).
Hoje, uma nova versão se coloca: a persona de um indivíduo se quebra em pelo menos quatro grandes pilares: o demográfico; o psicográfico (esse compreendido pelos interesses, paixões e motivações); o mais novo pilar, o comportamental (que compreende não só seu consumo de mídia, mas também e principalmente sua jornada de compra) e; finalmente, o geográfico, um pilar muito novo para o marketing, já que com a tecnologia conseguimos localizar geograficamente o usuário e identificar seu entorno para melhor conhecimento de sua vida cotidiana.
Não quero me estender aqui com o óbvio e o já bastante falado gerenciamento de dados – ao qual ele traz profundamente no livro. Contudo, gostaria de colocar luz e foco no que Kotler chama de marketing preditivo (por meio de dados, claro). Um novo campo de estudo de dados para os gerentes de produto que sofrem as tensões do lançamento de novos produtos e serviços em suas carreiras. Todavia, não só.
Kotler traça também um paralelo com o que ele chama de gerenciamento preditivo de marca, a partir de testes AB para as campanhas e otimização de alcance e conteúdo. A perspectiva do uso de machine learning no aprendizado do que vai bem ou mal numa campanha para melhores taxas de click through e sentimentos mais próximos aos valores de marca.
Há mais ou menos 20 anos, quando se falava em tom bastante jocoso e irônico sobre a “tratar bem o freguês”, acredito que não se esperava um desenvolvimento tão intenso das alavancas tecnológicas de marketing para que o “cliente” se tornasse de fato “sua majestade”. Tão pouco que ele pudesse ter a força de ter em suas mãos o poder de colaborar ou prejudicar a performance financeira e/ou de marca de um negócio.
Esse momento chegou. Bem-vindos ao mundo da sua majestade, o usuário!
Texto publicado originalmente por MIT Sloan Management Review Brasil: https://mitsloanreview.com.br/
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